julho 31, 2009

Nova morada

Este blog agora tem uma nova morada.
Está em: http://anateresapereira.wordpress.com

Já lá estão algumas novidades e prometemos mais para breve.
Como sempre continua aberto à participação de todos.

março 15, 2006

Potuguese writers [fiction] - Ana Teresa Pereira

No site do IPLB existe uma tradução dos quatro primeiros capítulos do livro "Se Nos Econtrarmos de Novo" [If We Meet Again]. Para a leitura tem de se descarregar o ficheiro .pdf

Onde tu estás é sempre o fim do mundo

Eduardo Prado Coelho
Público, Mil Folhas, 21 de Janeiro de 2006


Tendo começado por fazer narrativas de índole policial, Ana Teresa Pereira, foi criando um espaço, um tipo de casas, alguns lugares públicos, paisagens invernosas, uma forma de diálogo, um modo de se alimentarem acentuadamente frugal, e quase sempre as mesmas personagens.


Há escritores que deambulam pelo mundo à procura de pontos de apoio. Outros escolhem uma região polar – e instalam-se nela: vivem do gelo e do deserto, do desamparo e da luz que se inclina sobre os rostos fatigados. Exploram até à exaustão a terra que inventaram e aí implantaram objectos, corpos, desenhos marítimos, bolsas de vento. Não será por acaso que a capa da mais recente ficção de Ana Teresa Pereira reproduz um pormenor dum quadro de Caspar David Friedrich intitulado “O Mar de Ciclo’’: brancura fracturada em lajes que restaram de uma catástrofe antiga, formas pontiagudas que perfuram o céu, infinita distância do vazio.

Ana Teresa Pereira pertence a este segundo grupo. Tendo começado por fazer narrativas de índole policial (Sherlock Holmes ou William Irish são referências insistentes), Ana Teresa foi criando um espaço, um tipo de casas, alguns lugares públicos (velhas livrarias, teatros), paisagens invernosas, uma forma de diálogo, um modo de se alimentarem acentuadamente frugal, e quase sempre as mesmas personagens (um homem mais velho, escritor, e alguns amantes de contornos esquivos), um conjunto obsessivo de referências literárias e cinematográficas (às vezes alargadas às artes plásticas), formas de vestuário (camisolas de lã, “jeans”). Há o risco de uma certa monotonia, mas cria-se o contorno dos reencontros, como quem todos os anos pelas férias regressa à mesma praia e aos pequenos bares que a rodeiam e às casas de madeira sobre a areia.

Desta vez, o ambiente é totalmente inglês. Temos um casal de actores, sendo ela Kate e ele Clive. O texto designa-os como “os amantes de Kensington Gardens”. Depois surge a memória de um escritor que Kate conheceu numa livraria, quando ele fazia uma conferência sobre Henry James. E Kate conta como ele a tinha convidado para tomar um copo. E depois tinham ido para “a casa de Portobello Road”. Ana Teresa Pereira gosta de enunciar nomes de lugares, que deixam de ser uma topografia neutra, para ganharem uma espécie de sensualidade (memória, ternura, desejo). Clive pergunta: “Fizeste amor com ele?” E Kate responde com indiferença: “Sim.” “Ele sorriu sem vontade. Foi bom?’ -Acho que sim. Foi há muito tempo.” Kate recorda: “A casa verde de Portobello. Entre a casa branca e a casa cor de telha. O jardim nas traseiras coberto de neve. Os braços do homem à volta da sua cintura. A voz funda, com o sotaque de Oxford, a voz de um actor que faz o público ter vontade de ajoelhar. O desejo.” Aqui introduz-se um novo elemento que imprime as marcas de uma atmosfera: as cores nítidas, concisas, o branco, o verde. A casa verde pode ser estritamente referencial: mas abre uma espécie de fantasia que a imaginação vem ocupar.

Há um arco que atravessa as personagens: elas estão entre o princípio do mundo e o fim do mundo. Tom (nome obsessivo no universo de Ana Teresa Pereira, que dedica a Tom o seu romance) diz a dada altura, ao reaparecer anos depois: “há qualquer coisa na tua beleza que me comove. E assim, com a neve no cabelo, pareces um anjo do princípio do mundo.” A noite Kate vai ouvir um concerto numa igreja. Tocam A Criação de Haydn: “O princípio do mundo. Um anjo do princípio do mundo.”

Aqui entram em cena os amos. Estas personagens inclinam-se entre serem gente que caminha sobre a terra, corpos aconchegados, na recusa de serem deuses, e anjos que abrem a multiplicidade dos céus que cabem na alma de unia pessoa. “Eu encontrei na Rússia os anjos que desdobraram os céus no princípio dos tempos.” E este princípio dos tempos tem a ver com certos livros com naturalmente os de Ana Teresa Pereira. “Em todos os livros há duas pessoas que estão ligadas... mas como já se conhecessem há muito tempo (...) “Desde o princípio do mundo’? Algo assim. E eles encontram-se... - Suponho que em todos os livros... eles se encontram de novo.” É isso que redime a repetição: o que se repete é sempre a primeira vez e é como primeira vez irrepetível que se repete.

Há uma intromissão de “Andrei Roubliev” ou da obra de Tarkovski, um misticismo ardente, uma religiosidade terrestre (que se combina com uma sexualidade displicente e e vagabunda). “Mais tarde ele dissera-lhe que os seus menores movimentos tinham um sentido religioso. Como se fosse um anjo. Um anjo do princípio do mundo, que atravessara os milénios intocado e sem memória. Era por isso que o mundo se transformava num lugar solitário onde quer que ela estivesse: a vaguear na margem do rio, sentada nos degraus da igreja de St. Martin-in-the-Fields, adormecida na relva de um parque, reclinada no balcão de um pub a beber cerveja.” As personagens têm um estatuto insólito: ela vive a navegação brumosa da identidade: “Não sabia quem era quando não estava a representar. Katie, que se transformava em tantas mulheres, Miranda, Stela, Hilde, Cecily, por vezes tinha medo de não ser ninguém. De ter escolhido aquela profissão para fugir ao vazio, à falta de identidade. Talvez com um escritor acontecesse o mesmo. Viver através das suas personagens para fugir ao vazio, ao horror de estar sozinho e não ser realmente ninguém.” Clive é uma paixão leve, um pássaro esvoaçante, um desejo “light”. Tom tem a espessura frontal e enigmática de um ícone: “Um ícone é uma janela para o reino de Deus.” Mas uma palavra inglesa diz que Kate é uma “becomer” (é logo no limiar do livro que esta expressão aparece, e vai reaparecendo ao longo do texto): “Ela era uma ‘becomer’ e transformava-se na personagem que estava a representar. Se Clive a achava parecida com um anjo era porque a amava. Palavras que um homem diz à mulher que ama. O princípio de um livro de William Irish. Um daqueles livros de que eles não se separavam nunca. Não eram muitos. Os poemas de W. B. Yeats e de Rilke, as peças de Shakespeare e de Ibsen, algumas de Tennessee Williams, os romances de Wílliam Irish, os livros de contos de William Irish, as aventuras de William.”

Um dia Marguerite Duras disse que tinha conhecido uma criança que perguntava à mãe o que era o calor. E a mãe respondeu: “É quando a gente estende a mão e se queima.” E a criança voltou a perguntar: “E o que é o calor quando não há ninguém?” Duras acrescentava que os seus livros eram escritos do mesmo modo: “E o que é o amor quando não há ninguém?”

Tom disse a Katie: “Gosto de te ver com a neve nos cabelos.” E dialogam os dois: “- Talvez houvesse neve no princípio do mundo. - Sim. Longas paisagens de gelo.— Como nos teus sonhos? — E nesse mundo feito de gelo ainda não havia homens.” É este o lugar de Katie. É este o olhar dos homens que a amam: “Com um estremecimento ele percebeu que não havia mais nada, só a neve, o gelo, e depois mais neve, e mais gelo, estavam no princípio do mundo, num tempo sem deuses e sem homens. O lugar mais solitário do mundo.”



Obrigado Arlindo.

(sem título)

JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias Ano XXV n.º 921, de 18 a 31 de Janeiro de 2006

Ana Teresa Pereira, O MAR DE GELO, Relógio d’Água, 127 pp.

“Como muitos actores ingleses, Kate Dylan era uma becomer: transformava-se nas personagens que tinha de interpretar. Do mesmo modo que em menina se identificava com as personagens dos seus livros de aventuras, e depois com Lizzy Bennet e Emma Woodhouse; mais tarde com as mulheres de Henrik Ibsen e Tennessee Williams”. Assim começa o novo livro de Ana Teresa Pereira, uma das vozes mais singulares da ficção contemporânea, recentemente distinguida com o prémio literário PEN Clube Português. Fazendo eco de O Mar, O Mar, de Iris Murdoch, (também editado pela Relógio D’Água) e de um quadro de Caspar David Friedrich (reproduzido na capa), O Mar de Gelo é uma cintilante novela, fortemente marcada pelas recorrências literárias da autora, como citações literárias, pictóricas, musicais e teatrais. Neste caso, Kate e Clive, dois jovens actores desempregados, unidos por um amor inquestionável, têm pela frente um Inverno impiedoso. Com poucos recursos, a solução para o superar talvez esteja no escritor Tom Stewart…

Obrigado Arlindo.

Os gestos do amor

Mais uma belíssima História por Ana Teresa Pereira
Texto de Helena Barbas sobre O Mar de Gelo, de Ana Teresa Pereira, Relógio de Água, 2005, 138 págs., € 14

EXPRESSO n.º 1730 suplemento Actual, de 23 de Dezembro de 2005

Ana Teresa Pereira reincide no tema do amor eterno: "Em todos os livros há duas pessoas tão ligadas como se se conhecessem há muito tempo" (pág. 49). De novo o que interessa não é tanto a intriga em si, mas o modo como é contada.

Trata-se de "uma história de amor entre três pessoas", que podia cair no banal triãngulo amoroso, ou no ainda mais banal adultério, mas não. Tudo se passa entre um casal de actores – Katie e Clive – que se conhecem desde a infância; foram o rapaz/a rapariga da casa do lado. Clive escreve peças de teatro que Katie vai protagonizando e em que ele próprio também entra. E depois há Tom, um escritor de sucesso, ex-professor em Oxford. Todos tentam ter êxito nas suas artes. Subordinam-lhes as suas vidas, e não é possível distinguir onde começam umas e acabam as outras. "Era bom para o trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites" (pág. 43). Mas este processo pode ser perigoso: "Katie, que se transformava em tantas mulheres, Miranda, Stella, Hilde, Cecily, por vezes tinha medo de não ser ninguém. De ter escolhido aquela profissão para fugir ao vazio, à falta de identidade. Talvez com um escritor acontecesse o mesmo" (pág. 59). O entendimento entre as personagens assim o insinua. Katie procura seduzir Tom, com quem já tivera um caso quando era estudante, e que não se recorda dela. Vai então segui-lo pelas ruas escuras de Londres, pelas livrarias e jardins, suscitando encontros de olhares fortuitos que foram premeditados. Encena os gestos do relacionamento amoroso: "Eram actores profissionais e a paixão tornava-se fácil de representar. O mundo é um palco e eles tinham consciência disso. No fundo, muito no fundo, sentiam-se superiores ás outras pessoas. Porque eles sabiam que era só uma peça (pág. 13). Todas as hierarquias são invertidas, subvertidas, subordinadas à verdade de cada par de amantes: "Katie bebeu o chocolate lentamente. Não, nenhum deles criava algo para ficar. Estavam de passagem e não deixavam marcas. A única forma de serem eternos ( pág.27). Um estranho e paradoxal elogio do efémero.


Obrigado Arlindo.

O que morrerá comigo quando eu morrer

Eduardo Prado Coelho
Público, Mil Folhas, 10 de Setembro de 2005

Todos os escritores se inscrevem no território que eles próprios vão criando ao se inscreverem. Como Faulkner ou Juan Rulfo, em casos mais extremos. Mas muitas vezes isso é meramente secundário, não passa de obra para obra de um mesmo autor, não ganha espessura. É apenas uma questão de moldura. Noutros casos, não é assim: Ana Teresa Pereira é um exemplo privilegiado desta segunda hipótese.

Partiu de um esquema vagamente policial para enveredar por uma ficção fantástica em que a paixão e a destruição andam de mãos dadas. As personagens atravessam os livros, com os mesmos nomes ou outros. As referências literárias ou fílmicas, aliás insistentes, andam quase sempre em torno das mesmas personagens. O mais importante, aquilo que constitui a força mais exuberante e fecunda, encontramos em Iris Murdoch. Mas temos, por exemplo, Julio Cortázar. Jorge de Sena ou Dylan Thomas e William Irish. Como temos realizadores de cinema: Nicholas Ray, por exemplo; ou argumentistas, como Tonino Guerra. Ou actores: Katherine Hepburn ou Gabriel Byrne.

O que é interessante é que estas figuras acabam por ganhar todas o mesmo estatuto: são seres mágicos que se localizam neste território. Gabriel Byrne é uma personagem real ou apenas o actor de cinema? Tonino Guerra é o escritor ou uma amizade sonhada por Ana Teresa Pereira? Fica-nos a dúvida. Todos caminham por entre nuvens, vêm até nós, desprendem-se de nós. Quando Ana Teresa Pereira pergunta: “O que morrerá comigo quando eu morrer?”, introduz um elemento novo: “Que significa morrer comigo?” e ao mesmo tempo diz-nos que todo este território morrerá com ela, mortos e vivos, inventados ou captados no tecido concreto do quotidiano dos factos. Morre Henry James mas também Gabriel Byrne. É o momento da descoincidência: “Há um momento em que o rosto coincide com o que somos, e esse momento é agora”, escreve Ana Teresa Pereira. Momento mágico. Mas quando a morte se aproxima “chegou o momento de afundares os livros e renunciar à tua magia”.

O livro agora publicado por Ana Teresa Pereira intitula-se “O Sentido da Neve” e reúne um conjunto de crónicas que suponho que foram escritas para o PÚBLICO. Estas crónicas têm muito de autobiográfico e muito de brevíssimas hipóteses de ficção. Falam de livros, de filmes, de cidades e de rostos. O que a própria Ana Teresa explica: “Tu és feita da matéria dos livros.” Apetece-me dizer que é um livro muito belo, em que nenhuma das múltiplas referências (nem mesmo o pesado tema do envelhecimento) prejudica o sentido da dança, a leveza das nuvens, à ambivalência da neve, esse frio que queima.

Estas crónicas têm assim um lado coreográfico que nos transposta e exalta. Sentimos a felicidade de as ler. Elas possuem um tema que uma delas explicita. Como escreve Borges: “A não ser que exista uma memória do universo, em cada morte desaparece uma coisa ou um número infinito de coisas.” Esta infinitude singular é, sem dúvida, um dos sentimentos deste livro. O gosto pelas enumerações vai nesse sentido. As enumerações não têm fim, e essa dimensão do inacabado é nelas essencial. Mas ao mesmo tempo uma enumeração é a celebração das coisas naquilo que têm de único: uma cidade, uma casa, um animal, uma comida, um rosto (“este é um filme que não se pode contar, porque não se pode contar um rosto”).

E assim podemos ler: “O meu primeiro gato; o meu pai chegando a casa com um pacote de livros debaixo do braço; o canto dos pássaros às cinco da manhã; todos os meus gatos (e foram muitos); o meu cão Charlie a olhar para o mar; a minha cadela Jimmy a correr para mim; o Paul do Mar, uma linha de terra entre as montanhas e o oceano o teu rosto quando vinhas ao meu encontro na primeira manhã (e parecias dez anos mais novo do que na noite anterior, entre aquelas pessoas tão cinzentas); os teus olhos quando estás feliz; o teu sono cheio de monstros; a tua dor de estar vivo; Gloria Grahame na porta do apartamento vendo Bogart ir embora: ‘I lived a few weeks while you loved me.’ Ida Lupino roçando um sino de vento, a folhagem de uma planta, um ramo seco de árvore; Sterlong Hayden dizendo ‘don’t go away’ e a voz de Joan Crawford no escuro: ‘I haven’t moved’; o rosto de James Stewart quando diz a Kim Novak ‘and then I’ll be free of the past’ (...). Iris Murdoch a passear no nevoeiro de Londres com Elias Canetti; William Irish, sozinho num quarto de hotel, a escrever ‘O que viram os meus olhos ; um anjo de Rilke (belo e terrível) num castelo perdido; um anjo de Rilke sentado à minha mesa, fazendo bolinhas com as migalhas de pão(...); o rosto de Byrne na penumbra do apartamen­to; a neve caindo nos meus livros.”

Estas enumerações são combinações de números e Ana Teresa explica esta fórmula: “Se alguém me perguntasse o que me faz feliz, eu diria: os números. A neve e o gelo e os números. Os números negativos, o facto de que sentimos a falta, o desejo de algo; as fracções, a consciência dos espaços entre as pessoas; e a história continua, a mente humana vai além da razão e cria os números irracionais, e eles são infinitos, e depois os números imaginários, que a nossa consciência não pode apreender, como uma paisagem aberta, como um horizonte para o qual avançamos e que continua a retroceder.”

Mas um outro tema se cruza com esta questão das cifras - o do segredo. Todas as pessoas transportam um segredo: “O homem do autocarro, o caixeiro por detrás do balcão, todos têm o seu segredo. E alguns há cujo segredo não é inocente. Mas têm de usar a máscara até morrerem. Eu chamo-lhes: os Insuspeitos.” O que faz o encantamento deste livro têm que ver com esta paixão pelo segredo. Invisível, impalpável, diáfana.

Há um terceiro tema que gostaria de sublinhar: é o do anjo que desdobra o céu. Baseada num fresco de Andrei Rublev, “um anjo desdobra o céu, é só um fragmento, não posso ver o anjo (os anjos?). Do outro lado.” E mais adiante: “E havia a história dos anjos que desdobravam os céus no principio do mundo.”

“O Sentido da Neve” é um livro que se lê e relê com redobrado prazer. Porque nele os anjos continuam a desdobrar os réus. A leitura é isto mesmo.


Obrigado Arlindo.

Novidades

Nos últimos meses este blog tem estado completamente parado, sendo o último post de Dezembro de 2005. Esta inactividade não tem a ver com a falta de novidades mas apenas com a minha pouca disponibilidade para as introduzir aqui. Desde sempre que solicitei ajuda para a construcção do blog e apenas a Lídia mostrou disponibilidade, ainda que momentânea. Renovo o pedido a todos aqueles que pensem poder ter algo a dizer aqui, o blog é aberto à participação através do email orostodedeus@sapo.pt Estou ainda disponível para criar novos membros do blog.

Em resposta a um comentário do Luís Filipe Silva informo que existem sítios onde é possível ler alguns capítulos de livros da Ana Teresa Pereira (aqui e aqui, por exemplo). No início pensei em colocá-los no blog, mas penso que precisaria da autorização da editora e da autora, pelo que decidi não o fazer. Quanto aos resumos estão quase todos prontos, faltam alguns dos primeiros livros, e serão dentro em breve adicionados às páginas individuais de cada livro.

Mais novidades:
Existe uma tradução em inglês dos primeiros quatro capítulos do livro "Se Nos Encontrarmos de Novo" disponível na web (link em breve). Começa assim:
"Perhaps it is possible to love a woman because of a book, a poem that has been underlined, a black and white movie, a house, the look in a man’s eyes when he talks about her, the way her dog waits for her. Because of a Mondrian print on the living room wall."

Estou a preparar com outra pessoa uma espécie de "Antologia do inútil" sobre todas as referências de todos os livros de Ana Teresa Pereira. Um trabalho gigantesco do qual esperamos ter alguns resultados em breve.

Outras novidades e textos sobre a autora em posts próximos.

dezembro 23, 2005

O mar de gelo


Novo romance da autora (que recebeu em 2004 o prémio literário PEN Clube Português, 1º lugar ex-aequo, com Se Nos Encontrarmos de Novo)

Muitos anos depois, em Londres, retomara o antigo hábito. Era bom para o seu trabalho. Observar os outros. O rosto de uma pessoa quando pensa que está sozinha. Quando pensa que não está a ser olhada. Um gesto, uma expressão, um olhar, podiam ser reproduzidos mais tarde, num palco, e ganhar uma importância que nunca haviam tido. Era um pouco assim que compunha as suas personagens, pedaços de si própria, pedaços dos outros. E também era interessante ver a reacção de uma pessoa quando percebia que estava a ser seguida todas as noites. Como se o mais insignificante empregado de um bar ou arrumador de cinema tivesse uma vida dupla, e entrasse em pânico ao perceber que alguém o espiava. Ela gostava de infundir medo.

Tirado daqui

setembro 27, 2005

O Mar de Gelo - Novo livro?




Será?


julho 28, 2005

O monstro de olhos verdes

Começar a ler um livro de Iris Murdoch é entrar num mundo desconhecido, que não se parece com nada, e ao mesmo tempo é aquele em que vivemos.


Ana Teresa Pereira
Jornal Público, suplemento MilFolhas, 23 de Julho de 2005

“Tu fizeste com que eu representasse, fizeste com que toda a gente representasse, és como um bom dançarino, fazes com que os outros dancem, mas tem de ser ‘contigo’. Não respeitas as pessoas enquanto pessoas, não as ‘vês’, não és verdadeiramente um professor, és uma espécie de feiticeiro predador.”

Charles Arrowby, um conhecido encenador de teatro no crepúsculo da sua carreira, decide retirar-se para uma velha casa junto ao mar, no norte de Inglaterra, e escrever as suas memórias. Ele escreveu algumas peças, efémeras, quase pantomimas, que não deixou mais ninguém encenar. Mas agora quer algo que permaneça; logo na primeira página o texto transforma-se num diário, e mais tarde num romance.

“O mar, o Mar”, de Iris Murdoch, é uma recriação, sem dúvida a mais brilhante, de “A Tempestade” de Shakespeare. Charles é um Próspero de sessenta e poucos anos que decide renunciar à sua magia e ao seu poder: a magia e o poder do teatro, a magia e o poder das relações pessoais. O final da vida é um tempo de meditação, talvez o tempo de aprender a ser bom. Há pessoas que passam o final da vida numa cave. A casa de praia situada num promontório (Shruff End), as rochas à volta e uma torre em ruínas serão a sua cave. Os amigos não acreditavam que ele algum dia se retirasse (seria como se Deus se retirasse). Ou então, pensavam que se deixasse de trabalhar e vivesse sozinho iria enlouquecer aos poucos. Mas nos primeiros dias Charles sente-se plenamente feliz com a solidão e a proximidade do mar. O oceano, onde tudo termina para voltar a começar, assemelha-se de alguma forma ao teatro, infinita construção, infinita destruição.

No entanto, a solidão não dura muito tempo. Não é possível deixar a vida para trás e olhá-la de fora. A casa torna-se inquietante (uma casa assombrada onde os objectos se deslocam e se ouvem ruídos durante a noite), as imagens e os demónios que vivem dentro de Charles começam a materializar-se à sua volta. E em breve surgem visitas que ele não esperava: antigas amantes, maridos ciumentos, actores com quem trabalhou, um jovem que imagina ser seu filho. Há momentos em que Shruff End é nitidamente um cenário de “A Tempestade”: Charles é Próspero, o velho mago, Lizzie, uma ex-amante que ele de certa forma invocou, é Ariel, Gilbert Opian, que vai apanhar lenha e o serve, é Caliban. Ariel e Caliban amam Próspero.

A história trona-se muito estranha quando Charles reencontra o seu primeiro amor, Mary Hartley Smith. Ela é o motivo porque nunca casou (embora também afirme que nunca encontrou alguém que se comparasse às heroínas de Shakespeare), a mulher em quem pensou todos os dias da sua vida. Hartley, de olhos azuis-escuros que pareciam violeta quando não se estava a olhar para eles, rosto pálido e pernas compridas, com quem andava de bicicleta e se deitava em campos cobertos de flores amarelas, perto de vias-férreas e de canais. Hartley tinha os lábios frios e não fechava os olhos quando ele a beijava; nunca o abraçou mas por vezes apertava-lhe os braços com uma certa rigidez deixando nódoas negras. Conversavam como anjos (não obscuramente, como num espelho, mas face a face), faziam planos para o futuro. Essas memórias são mais radiosas do que uma obra de arte, mais importantes do que Shakespeare e Piero della Francesca.

Ao encontrar Hartley, Charles compreende (ou imagina) que continua a amá-la. “Apetecia-me tocá-la, mas apenas com a ponta dos dedos, como se ela fosse um fantasma que se pudesse dissolver, apetecia-me sentir entre os dedos o toque do seu vestido. Agora sentia uma necessidade mais precisa, a de prender entre as suas mãos a sua cabeça e puxá-la suavemente para mim, de ouvir o seu coração bater.” Está de tal forma dominado pelo ciúme e a obsessão que começa, quase inconscientemente, a encenar um drama; afinal o mundo é um palco e os outros não passam de actores que ele pode dirigir, e sente-se capaz de arrasar tudo e todos para atingir os seus objectivos. A presença de Hartley faz com que o espaço e o tempo desapareçam. Não importa que ela seja velha (tem a sua idade), feia (o facto de a amar embora já não seja bonita dá-lhe prazer) e casada há mais de quarenta anos com um homem tão obcecado e violento como ele. Os casamentos são lugares muito secretos e Nibletts, apequena vivenda no cimo da colina, com inúmeros canteiros de rosas e uma bela vista do mar, está longe de ser um cenário pacífico.

Em Londres, ao visitar a Wallace Collection, Charles vê um quadro de Ticiano, “Perseu e Andrómeda”, que lhe parece uma projecção da sua história. A jovem amarrada às rochas, o amante que se precipita para o mar e o monstro marinho... Pouco depois entra na sala (no palco?) o seu primo James, um militar enigmático que tem uma ligação muito forte com o Tibete e com os poemas de Milarepa. Quando eram crianças, Charles perguntava a si mesmo se era real e James desprovido de realidade, ou vice-versa, um deles devia pertencer ao mundo das sombras (na verdade há momentos em que eles se parecem dois aspectos de um mesmo ser). A magia de James era diferente da de Charles, ele encontrava os caminhos dos bosques e os objectos perdidos, conhecia os nomes dos pássaros e das flores e tentava seriamente aprender a voar. Quase no fim do livro, intuímos que é capaz de levitar e talvez até de escolher o momento da sua morte.

Charles é um actor. Ele acha que os actores são seres mascarados e o ideal é que a máscara quase não toque o rosto; mas no fundo é um “becomer”, transforma-se na personagem que está a interpretar. Autor da peça, encenador, e primeiro actor. Mas talvez não seja tão poderoso como imagina, não na vida real. Na última página, quando, sem querer, faz cair um pequeno cofre onde supostamente está preso um demónio, e a tampa se abre, pergunta a si mesmo: “Nesta peregrinação a que chamamos vida humana, dominada pelos demónios, que posso agora esperar?”

E, ao longo de todo o livro, a presença do mar. A eterna transformação, o eterno recomeço. Como em muitos romances da escritora, o lugar onde se morre e por vezes se renasce. E o céu. “Já não estava escuro, mas brilhante, dourado, como ouro rm pó, como se alguém houvesse removido sucessivas cortinas atrás das estrelas que eu vira anteriormente, e eu estivesse agora a olhar para o vasto núcleo do universo, como se este estivesse, silenciosamente, a virar-se do avesso.” E uma pergunta obsessiva, que se repete uma e outra vez: “Quem é o nosso primeiro amor?”. A resposta pode não ser tão simples como parece.

Iris Murdoch nasceu em Dublin em 1919 e morreu em Oxford em 1999. Foi aluna de Wittgenstein, amante de Elias Canetti. Na sua obra sente-se particularmente a influência de Platão, Kant e Simone Weil. É autora de vários livros de filosofia, peças de teatro e vinte e seis romances. “O Mar, o Mar” ganhou o Booker Prize em 1978. É considerado por muitos o seu melhor romance, uma das obras-primas da literatura inglesa do século vinte. O título remete para Valéry (“La mer, la mer, toujours recommencée”) e Xenofonte (as palavras dos gregos ao avistarem o mar durante as guerras pérsicas). Malcolm Bradbury escreveu que o livro é implacável e cheio de dor; Gabriele Annan que é uma comédia com vigias que nos permitem olhar para o cosmos.

Começar a ler um livro de Iris Murdoch é entrar num mundo desconhecido, que não se parece com nada, e ao mesmo tempo é aquele em que vivemos. “O Mar, o Mar”, à semelhança de outros romances da autora, pode ser lido como um conto de fadas (no sentido em que muitos contos e novelas de Henry James são “fairy tales”), como uma história de amor e morte, como uma investigação filosófica. Estão presentes nele alguns dos seus temas habituais: o conflito entre o artista e o santo, a possibilidade de ser bom num mundo sem Deus, a vida como uma peregrinação espiritual.

Bem vindos ao mundo de Iris Murdoch.

“O mar que se estende à minha frente enquanto escrevo resplandece, mais do que cintila, sob um morno sol de Maio. Com a mudança da maré, reclina-se calmo contra a costa, quase liso, sem espuma nem ondulação. Nas proximidades da linha do horizonte é de um púrpura voluptuoso, atravessado por linhas regulares de verde-esmeralda. No horizonte é cor de anil. Junto à praia, onde a minha vista é enquadrada por cabeços de rocha amarelada, vê-se uma faixa de um verde mais claro, frio e puro, menos luminoso, mas opaco, não transparente. (...)

A passagem acima, com a qual tencionava abrir o primeiro parágrafo das minhas memórias, escrevia-a pouco antes de um acontecimento tão extraordinário e tão horrível, que ainda hoje o não consigo descrever, e isto apesar de ter passado já algum tempo e me ter ocorrido para ele uma explicação plausível, ainda que não inteiramente tranquilizadora.”