março 15, 2006

O que morrerá comigo quando eu morrer

Eduardo Prado Coelho
Público, Mil Folhas, 10 de Setembro de 2005

Todos os escritores se inscrevem no território que eles próprios vão criando ao se inscreverem. Como Faulkner ou Juan Rulfo, em casos mais extremos. Mas muitas vezes isso é meramente secundário, não passa de obra para obra de um mesmo autor, não ganha espessura. É apenas uma questão de moldura. Noutros casos, não é assim: Ana Teresa Pereira é um exemplo privilegiado desta segunda hipótese.

Partiu de um esquema vagamente policial para enveredar por uma ficção fantástica em que a paixão e a destruição andam de mãos dadas. As personagens atravessam os livros, com os mesmos nomes ou outros. As referências literárias ou fílmicas, aliás insistentes, andam quase sempre em torno das mesmas personagens. O mais importante, aquilo que constitui a força mais exuberante e fecunda, encontramos em Iris Murdoch. Mas temos, por exemplo, Julio Cortázar. Jorge de Sena ou Dylan Thomas e William Irish. Como temos realizadores de cinema: Nicholas Ray, por exemplo; ou argumentistas, como Tonino Guerra. Ou actores: Katherine Hepburn ou Gabriel Byrne.

O que é interessante é que estas figuras acabam por ganhar todas o mesmo estatuto: são seres mágicos que se localizam neste território. Gabriel Byrne é uma personagem real ou apenas o actor de cinema? Tonino Guerra é o escritor ou uma amizade sonhada por Ana Teresa Pereira? Fica-nos a dúvida. Todos caminham por entre nuvens, vêm até nós, desprendem-se de nós. Quando Ana Teresa Pereira pergunta: “O que morrerá comigo quando eu morrer?”, introduz um elemento novo: “Que significa morrer comigo?” e ao mesmo tempo diz-nos que todo este território morrerá com ela, mortos e vivos, inventados ou captados no tecido concreto do quotidiano dos factos. Morre Henry James mas também Gabriel Byrne. É o momento da descoincidência: “Há um momento em que o rosto coincide com o que somos, e esse momento é agora”, escreve Ana Teresa Pereira. Momento mágico. Mas quando a morte se aproxima “chegou o momento de afundares os livros e renunciar à tua magia”.

O livro agora publicado por Ana Teresa Pereira intitula-se “O Sentido da Neve” e reúne um conjunto de crónicas que suponho que foram escritas para o PÚBLICO. Estas crónicas têm muito de autobiográfico e muito de brevíssimas hipóteses de ficção. Falam de livros, de filmes, de cidades e de rostos. O que a própria Ana Teresa explica: “Tu és feita da matéria dos livros.” Apetece-me dizer que é um livro muito belo, em que nenhuma das múltiplas referências (nem mesmo o pesado tema do envelhecimento) prejudica o sentido da dança, a leveza das nuvens, à ambivalência da neve, esse frio que queima.

Estas crónicas têm assim um lado coreográfico que nos transposta e exalta. Sentimos a felicidade de as ler. Elas possuem um tema que uma delas explicita. Como escreve Borges: “A não ser que exista uma memória do universo, em cada morte desaparece uma coisa ou um número infinito de coisas.” Esta infinitude singular é, sem dúvida, um dos sentimentos deste livro. O gosto pelas enumerações vai nesse sentido. As enumerações não têm fim, e essa dimensão do inacabado é nelas essencial. Mas ao mesmo tempo uma enumeração é a celebração das coisas naquilo que têm de único: uma cidade, uma casa, um animal, uma comida, um rosto (“este é um filme que não se pode contar, porque não se pode contar um rosto”).

E assim podemos ler: “O meu primeiro gato; o meu pai chegando a casa com um pacote de livros debaixo do braço; o canto dos pássaros às cinco da manhã; todos os meus gatos (e foram muitos); o meu cão Charlie a olhar para o mar; a minha cadela Jimmy a correr para mim; o Paul do Mar, uma linha de terra entre as montanhas e o oceano o teu rosto quando vinhas ao meu encontro na primeira manhã (e parecias dez anos mais novo do que na noite anterior, entre aquelas pessoas tão cinzentas); os teus olhos quando estás feliz; o teu sono cheio de monstros; a tua dor de estar vivo; Gloria Grahame na porta do apartamento vendo Bogart ir embora: ‘I lived a few weeks while you loved me.’ Ida Lupino roçando um sino de vento, a folhagem de uma planta, um ramo seco de árvore; Sterlong Hayden dizendo ‘don’t go away’ e a voz de Joan Crawford no escuro: ‘I haven’t moved’; o rosto de James Stewart quando diz a Kim Novak ‘and then I’ll be free of the past’ (...). Iris Murdoch a passear no nevoeiro de Londres com Elias Canetti; William Irish, sozinho num quarto de hotel, a escrever ‘O que viram os meus olhos ; um anjo de Rilke (belo e terrível) num castelo perdido; um anjo de Rilke sentado à minha mesa, fazendo bolinhas com as migalhas de pão(...); o rosto de Byrne na penumbra do apartamen­to; a neve caindo nos meus livros.”

Estas enumerações são combinações de números e Ana Teresa explica esta fórmula: “Se alguém me perguntasse o que me faz feliz, eu diria: os números. A neve e o gelo e os números. Os números negativos, o facto de que sentimos a falta, o desejo de algo; as fracções, a consciência dos espaços entre as pessoas; e a história continua, a mente humana vai além da razão e cria os números irracionais, e eles são infinitos, e depois os números imaginários, que a nossa consciência não pode apreender, como uma paisagem aberta, como um horizonte para o qual avançamos e que continua a retroceder.”

Mas um outro tema se cruza com esta questão das cifras - o do segredo. Todas as pessoas transportam um segredo: “O homem do autocarro, o caixeiro por detrás do balcão, todos têm o seu segredo. E alguns há cujo segredo não é inocente. Mas têm de usar a máscara até morrerem. Eu chamo-lhes: os Insuspeitos.” O que faz o encantamento deste livro têm que ver com esta paixão pelo segredo. Invisível, impalpável, diáfana.

Há um terceiro tema que gostaria de sublinhar: é o do anjo que desdobra o céu. Baseada num fresco de Andrei Rublev, “um anjo desdobra o céu, é só um fragmento, não posso ver o anjo (os anjos?). Do outro lado.” E mais adiante: “E havia a história dos anjos que desdobravam os céus no principio do mundo.”

“O Sentido da Neve” é um livro que se lê e relê com redobrado prazer. Porque nele os anjos continuam a desdobrar os réus. A leitura é isto mesmo.


Obrigado Arlindo.