abril 27, 2004

Muito simplesmente contos de...


João Céu e Silva, Diário de Noticias

A FICHA

CONTOS DE...
Autor. Ana Teresa Pereira
Editora. Relógio d'Água
Páginas. 374
Género. Contos
Preço. e 17,80
Classificação. ¢¢¢¢


«Sempre tinham dormido juntos. Em quartos de hotel, em cabanas perto do mar, em comboios que atravessavam noites sem fim.» Começa assim o conto As Estátuas, um dos nove que compõem a primeira parte deste volume intitulado muito simplesmente Contos de Ana Teresa Pereira.

Está tudo dito, pensam o autor, a editora e vai confirmar o leitor. Porque este é curioso e quer saber o que vai por ali em mais de 300 páginas. Se cada uma demorasse um ano a ler, teriam de ser várias vidas para o conseguir terminar ou obrigados a distribuir a tarefa por um grupo alargado. Mas, como cada página se lê rapidamente - sôfregas - basta um dia dedicado a elas.

Um pouco antes, escreve-se: «Fechou os olhos e, lentamente, deixou que a água a bebesse». É o fim do conto As Rosas, outro da mesma série iniciante destes textos recolhidos em algumas obras da escritora, publicadas (entre 1991 e 2000) e dois avulsos.

Leia-se ainda «A cabina telefónica tinha a estranheza das coisas que não estão no local certo, que não obedecem a uma ordem qualquer sem a qual a vida se torna impossível, quase desesperada», um trecho do meio do conto d'As Beladonas.

Estes três pedaços estão completos sob o título Fairy Tales e ocupam menos de um quarto do papel impresso. Mas são um aperitivo servido antes de um prato mais forte, à disposição logo de seguida: outros seis contos que preenchem mais folhas - Num Lugar Solitário até ultrapassa as 100 páginas - que mantêm um ritmo adivinhado pelos mistérios desta autora tão assombrada por filmes ainda muito a preto e branco de Alfred Hitchcock.

E, depois, andam por ali os mundos edificados pela loucura de uma sempre presente Iris Murdoch. Ana Teresa Pereira regressa periodicamente a esta senhora, como se tratasse de uma jangada que atravessa o mar entre si e o mundo e último porto de uma viagem de circum-navegação que a vida lhe exige a cada letra teclada.

Mas, regressando a Hitchcock, a páginas 282 a escritora fala de alguns filmes do realizador. E obriga o leitor a relembrar Rebecca, porque ela existe ao longo de muitas mulheres destes Contos de...; transgride com o leitor com o Bogart porque os seus homens não são baixos como ele; pactua quando os mostra belos e altos como Cary Grant; espicaça quando define Ingrid Bergman; divaga quando salta para veludo azul dos cortinados; ou no momento em que recusa entender Blue Velvet só porque é obsessivo e tem um filho e uma mãe que só servem no final. Mas, voltando ainda a Hitchcock, há o cenário de Notorious que está presente em tantos parágrafos da longa lista de escritos que Ana T. P. teima em nos referenciar biograficamente.

Ainda bem que o faz porque o mundo não é tão claro como outros colegas de escrita seus nos fazem crer. Mesmo que o homem Tom que perpassa em muitas páginas não seja mais que um tom de escrita!

abril 26, 2004

A Quatro Mãos Termina - Sábado, 24 de Abril de 2004


Os leitores notarão que a rubrica de crónicas A Quatro Mãos já não sai hoje nas páginas do Mil Folhas. Luís Miguel Queirós passará a escrever as suas crónicas no caderno principal do PÚBLICO e a mudança decorre já durante o próximo mês de Maio. A escritora Ana Teresa Pereira, ocupada com a escrita do seu próximo romance, fará também uma pausa na sua colaboração com o Mil Folhas. Quanto a João Barrento e a Mário Santos regressarão às páginas deste suplemento, num novo formato, em Maio.



Três anos e meio depois, e cerca de quarenta crónicas publicadas, a colaboração da Ana no Mil Folhas faz uma pausa. Esperemos que seja breve. E que a escrita do novo romance a ocupe o tempo suficiente do nosso deslumbramento, como sempre.

abril 12, 2004

A Quatro Mãos-Sábado, 10 de Abril de 2004

Os Lilases
Ana Teresa Pereira

Abril é o mês mais doce, pensou. Tinha a impressão de que escrevera a frase numa das suas novelas, Abril é um mês azul, os lilases, os jacarandás, os lírios. E o mar, que se estendia à sua frente, o mar no qual podiam surgir monstros de olhos verdes. Fechou o livro e pousou-o no muro, estendeu as pernas para o lado das rochas. No livro havia um rio, duas casas, uma em cada margem, e uma pequena ponte que as personagens atravessavam ao longo de toda a história. Desapareciam durante uns minutos e depois tornavam-se visíveis a meio da ponte. Tony, um homem bem-parecido que despertava paixões violentas, Jean, bonita e luminosa, com o cabelo muito louro, e Rose, uma personagem de Ibsen, feia e linda (Tu sabes o que eu sou, e voltaste para isso, finalmente, de muito longe). Era um livro ao qual apetecia voltar (e são os únicos que interessam), pelas casas, os jardins, o rio, e por eles, pela paixão e a violência que estavam tão perto da superfície. "The Other House" era uma novela surpreendente para quem conhecia a obra de Henry James, ali não havia subtileza, rodeios, tudo estava em bruto, ele nunca escrevera assim.

Abril é o mês mais doce. Voltou as costas ao mar e ficou a olhar para o jardim, os lilases estavam em flor, cresciam pelas paredes da casa e pelas árvores em volta, o jardim estava azul, ao longe viam-se as flores dos jacarandás. A casa era cinzenta e tinha uma torre. Também havia lilases na casa do romance que estava a escrever, ficava numa ruazinha de Londres, na parte da cidade de que mais gostava, perto da National Gallery, dos alfarrabistas, dos teatros. Byrne alugara o sótão durante um ano para escrever um livro sobre Iris Murdoch. E ela conhecia o rosto de Byrne, era o de um actor de cinema, durante meses recortara fotografias de revistas, voltara a ver os filmes dele (And I love you, angel), e depois fora a Londres porque precisava de ver quadros e de caminhar na rua onde ficava a casa de Ashley. Uma noite fora ao teatro, a cadeira ao seu lado estava vazia, um homem entrara quando as luzes estavam apagadas; no intervalo vira que o homem sentado ao seu lado era ele. E nem mesmo Henry James seria capaz de fazer isso, pensou. Lembrava-se de palavras que lhe dissera naquela noite, e ele, o protagonista do meu livro, tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês, e tem cinquenta e dois anos. Um sorriso. Then he has nothing to do with me, I am only twenty seven.

Caminhou devagar pelo jardim, deteve-se para fazer uma festa a um gato. Algum tempo depois um escritor que vivia muito longe sonhou com o livro, disse que ainda não chegara o momento de o publicar, acontecera algo de parecido com um filme de Antonioni, e ele não fizera o filme. E havia a história dos anjos que desdobravam os céus no princípio dos tempos. Encontrara referências a esses anjos nos romances de Iris Murdoch, em "Nuns and Soldiers" eles desdobravam os céus, em "The Green Knight" voltavam a dobrá-los, porque chegara o fim dos tempos.

Entrou pela porta envidraçada do escritório, as reproduções de Rothko e de Chagall, as estantes, as pedras, a jarra de lilases. Tirou o manuscrito da gaveta, folheou-o devagar, os versos de Stevenson, as ruas de Londres, os quadros, os parques, a casa de praia e os pássaros. E a neve. E parecia tudo tão calmo, tão inofensivo. O livro ficara inacabado, ela gostava de livros inacabados, de quadros inacabados. Voltou a guardá-lo na gaveta e foi à cozinha buscar uma fatia de pão.

Escolheu um vídeo, um filme a preto e branco de Vincente Minnelli, com Robert Mitchum e Katharine Hepburn. O mar muito calmo. You can't always see that undercurrent, but it's there.

Como na vida.