julho 30, 2003

A Quatro Mãos - Sábado, 12 de Julho de 2003

A sombra do passado
Ana Teresa Pereira

"Quantas máscaras encontramos durante o dia?" dizia a voz. As cadências eram impregnadas de pesar e espanto, mas não sem uma pontinha de agrado. "Quantas caras banais com dois olhos, nariz e boca? O homem do autocarro, o caixeiro por detrás do balcão, todos têm o seu segredo. E alguns há, cujo segredo não é inocente. Mas têm de usar a máscara até morrerem. Eu chamo-lhes: os Insuspeitos."

"Conheço esse homem." Assim falava Luther Grandison. "Sim, conheço um homem que cometeu o mais grave e interessante de todos os crimes, o de morte, e de quem ninguém suspeitou. Há anos que usa a máscara, que vive normalmente entre nós (...)

A casa de Grandy era isolada, ficava no extremo norte da pequena cidade, numa rua que era quase uma estrada de aldeia. Luther Grandison, antigo director de teatro e de cinema, coleccionador de arte, continuava a fazer o seu programa de rádio, no qual contava histórias de crimes. Grandy vivia com duas sobrinhas: Althea, loura e muito bonita, que não tinha um vintém, e Mathilda, morena, de pernas compridas, herdeira de uma grande fortuna, e

que ele desde sempre chamara de "patinho feio". Mathilda partiu para as Bermudas, o navio afundou-se e todos pensam que ela se afogou. Entretanto, a secretária de Grandy, Rosaleen, aparece morta no estúdio dele. Mathilda

afinal está viva, e ao regressar encontra à sua espera um homem de quem não se lembra, que afirma ter casado com ela poucos dias antes da viagem, e que vive também na casa de Grandison. Sabemos desde o princípio que Francis não é de facto marido de Tyl, é amigo de infância e noivo de Rosaleen; usou aquele estratagema para introduzir-se na casa e provar que ela não se suicidou, foi assassinada por Grandison. Mas Tyl não sabe de nada e encontra-se dividida entre Grandy, que ama desde criança, que a modelou com a sua voz persuasiva e quente, com as suas palavras, e Francis, que diz estar apaixonado por ela, que a acha bonita e não um "patinho feio", e tenta convencê-la de que Grandy, o insuspeito, é capaz de matar para ficar com a sua fortuna. Um dia Francis desaparece e ela segue a sua pista até a cave onde foi feito prisioneiro. E estamos em pleno conto de fadas, em breve a princesa terá de escolher entre o pai, monstro (Grandy), e o príncipe, cavaleiro (Francis).

O livro chama-se "O Insuspeito" (Vampiro nr. 66), foi escrito por Charlotte Armstrong em 1946 e adaptado ao cinema por Michael Curtiz em 1947. Para quem o conhece desde criança (a casa rodeada de jardins; a cozinha onde Grandy prepara as refeições, com um barrete de cozinheiro, feliz no meio dos tachos, das abóboras e das cebolas, e Althea faz pão com maçãs assadas e canela; o quarto de Tyl e as suas conversas com Grandy pela noite dentro; o jardim onde Francis se encontra com Jane; Tyl seguindo o rasto dos

chocolates nas ruas calmas com casas no fundo de jardins; a cena na lixeira, quando Grandy chama por Tyl com a sua voz débil e Francis está amarrado dentro de uma mala, no meio do lixo, quase a ser atirado para a incineradora) o filme sabe a pouco. Mas Claude Rains é excelente como Grandy e o momento em que, depois de dar a Tyl o copo com o veneno, ele diz "I've never been closer to you" é inesquecível.

Adolfo Bioy Casares disse numa entrevista que há grandes livros que ficam esquecidos por serem policiais. Uma sugestão de leitura para as férias: números antigos da Vampiro, a colecção Xis (que publicou de Charlotte

Armstrong "A sombra do passado" e "Veneno"). Alguns desses romances fazem pensar numa frase de Bataille que Fernando Savater usa como epígrafe num dos seus livros: "A literatura é a infância finalmente recuperada".

julho 23, 2003

Bibliografia

O essencial antes de tudo o mais, ou seja, a bibliografia da autora:

"Matar a Imagem" (1989),
"As Personagens" (1990),
"A Última História" (1991),
"A Casa dos Penhascos" (1991),
"A Casa da Areia" (1991),
"A Casa dos Pássaros" (1991),
"A Casa das Sombras" (1991),
"A Casa do Nevoeiro" (1992),
"A Cidade Fantasma" (1993),
"Num Lugar Solitário" (1996),
"A Noite Mais Escura da Alma" (1997),
"A Coisa Que Eu Sou" (1997),
"As Rosas Mortas" (1998),
"O Rosto de Deus" (1999),
"Se Eu Morrer Antes de Acordar" (2000),
"Até que a Morte Nos Separe" (2000),
"A Dança dos Fantasmas" (2001),
"A Linguagem dos Pássaros" (2001),
"O Ponto de Vista dos Demónios" (2002),
“ Intimações de Morte” (2002).

Colabora também com o jornal Público, no suplemento MilFolhas, na coluna A Quatro Mãos.
Foi premiada com o Prémio Caminho Policial em 1989, com o livro Matar a Imagem.

O inicio

Dia 23 de Julho de 2003, o inicio do blog sobre Ana Teresa Pereira... bem que podia ser a 8 de Novembro, o dia de todos os anjos...