novembro 17, 2003

A Quatro Mãos - Sábado, 15 de Novembro de 2003

The Art Of Fiction
Ana Teresa Pereira

Eu estava em Londres por causa dos quadros, Ticiano e Piero della Francesca na National Gallery, Rothko e Mondrian na Tate, e Whistler numa exposição temporária, uma loja escura, o Tamisa ao amanhecer, uma rua coberta de neve. Uma noite, quando passeava perto da livraria de Michael, reparei nos cartazes de "The Master Builder". Há uns dois anos que procurava o texto da peça, tinha qualquer coisa a ver com os meus livros, não sabia o quê. Uma menina numa aldeia das montanhas, o Construtor que chegou para inaugurar a torre da igreja, a torre mais alta do mundo. Ela viu-o no cimo da torre e apaixonou-se por ele (esta era a peça de teatro preferida de Freud). A menina está sozinha em casa e o Construtor entra na sala e dá-lhe um beijo, muitos beijos. Ele diz que ela é uma princesa e que irá buscá-la daí a dez anos, como um troll, para lhe dar um reino.
Era estranho ver a peça tantos anos depois, o meu velho conto de fadas num velho teatro de Londres. Quando as luzes se acenderam olhei com incredulidade o homem que estava sentado ao meu lado. Era mesmo ele, os olhos muito azuis, o nariz adunco, a boca, aquela figura um pouco sombria que vivia dentro dos meus livros e nos filmes de Bille August, de Bryan Singer, de Jarmusch. E ele sorriu; tínhamos tantas coisas para contar um ao outro, os quadros e a Irlanda, as peças de Ibsen e, o mais estranho de tudo, ele era o protagonista do meu romance e estava a escrever um livro sobre Iris Murdoch. E ele perguntou, tu leste "The Sea, the Sea"? Hilde dizia ao Construtor que viera lembrar-lhe a sua promessa, tinham passado dez anos e ela queria um reino. O Construtor tinha sentimentos de culpa em relação à mulher, pensava que ela ficara despedaçada pela morte dos filhos, mas ela conta a Hilde que só sente a falta das coisas que perdeu no incêndio da casa (são as pequenas coisas que nos partem o coração), os quadros, os vestidos, as jóias e, acima de tudo, as suas bonecas, ninguém se lembrara de salvar as bonecas...
E ele tem o teu rosto, e os teus olhos, e a tua voz, e é irlandês... Ele dizia-me que gostara de ser o demónio num filme, fazer do demónio um homem comum, porque o mal está em todos nós, nas pessoas por quem passamos na rua.
E disse-me para ler um livro, é estranho ouvir o actor de um filme dizer que o livro é melhor, o realizador era bom, os actores também, mas os estúdios queriam um thriller; os olhos dele pareciam mais escuros ao falar do livro, eles têm trinta palavras diferentes para neve... (Não sei o que acontece a uma escritora que encontra a sua personagem, só sei que não voltei a escrever...)
O Construtor fingia lembrar-se da história de Hilde e prometia dar-lhe um castelo; disse-lhe que já não construía igrejas, já não trabalhava para Deus; e falou-lhe dos demónios, há os demónios brancos e os demónios negros, e é difícil saber quais são os que nos conduzem... O troll dentro de nós. E Hilde pergunta, tens a certeza de que o troll dentro de ti não chamava por mim? As flores no jardim, as cadeiras de vime, e o Construtor, que tem vertigens, sobe a escada da torre, porque ela lhe pediu para fazer mais uma vez o impossível; mas, como dez anos antes, ele não está sozinho no cimo, discute com alguém ou alguma coisa... As luzes acenderam-se e ele levantou-se, eu procurei o casaco e quando me voltei ele tinha desaparecido no meio das pessoas que saíam, vesti o casaco devagar, não é possível que tudo tenha terminado aqui... Levantei-me por fim e sentia-me vazia ao descer os degraus, havia poucas pessoas na entrada, mas então vi-o junto à porta, estava à espera, e quando me avistou sorriu abertamente, o troll em mim chamava por ti, pensei, o troll em mim, e quase corri ao seu encontro.

novembro 06, 2003

A Harpa de Ervas e A Árvore da Noite e outras histórias

No suplemento Mil Folhas do jornal Público de sábado 1 de Novembro de 2003 encontramos esta excelente critica ao excelente livro de Truman Capote:

Preces Atendidas
Sábado, 01 de Novembro de 2003
Ana Teresa Pereira

"Havia agora nela uma suavidade sedutora; parecia menos angulosa, por assim dizer, menos dissonante em relação à média, e Vincent, ao oferecer-lhe um copo de xerez, ficou maravilhado ante a delicadeza com que ela o levou aos lábios. Vestia o roupão de turco dele, que lhe ficava enorme. Tinha os pés descalços e aninhou-se em cima do sofá. - A luz das velas faz-me lembrar a casa da minha avó, em Glass Hill - disse, e sorriu. - Passei lá momentos maravilhosos; sabes o que é que ela costumava dizer? Dizia assim: 'As velas são varinhas de condão; quando acendemos uma, o mundo passa a ser um livro de contos de fadas.'"

O conto chama-se "O Falcão Decapitado", e tem por epígrafe as palavras do Livro de Job: "Outros aborrecem a luz, não conhecem os Seus caminhos, nem habitam nas Suas veredas. Nas trevas, assaltam as casas que, durante o dia, fixaram. Não conhecem a luz. Para eles a manhã é uma sombra espessa, pois estão acostumados aos terrores da noite."

Ele é Vincent, trabalha numa galeria de arte, tem trinta e seis anos, "um poeta que nunca escrevera poesia, um pintor que nunca pintara quadros, um amante que nunca amara absolutamente ninguém". Nunca saberemos o nome dela, é jovem e bonita, veste-se de uma maneira estranha, vai ao cinema todos os dias, gosta de violetas e foge de Mr. Destronelli, um homem que toma todas as formas, por vezes nem sequer é um homem, pode ser um falcão, uma criança, uma borboleta. Mas todos nós o conhecemos, tal como conhecemos Mr. Revercomb, o homem que compra sonhos no primeiro conto de "A Árvore da Noite", todas as mães falam nele aos filhos, "vive nas árvores ocas, desce pelas chaminés à noitinha, esconde-se nos cemitérios e ouvem-se os passos dele no sótão"; e todos conhecemos Miriam, embora ela possa ter outros nomes; e o homem de olhos vazios que nos força a comprar um amuleto que parece um caroço de pêssego, mas afinal, ninguém "arranja amor por menos dinheiro"...

É neste mundo de velas acesas e monstros debaixo da cama que entramos ao começar a ler "A Harpa de Ervas". É um mundo que todos nós conhecemos, que talvez tenhamos esquecido pelo caminho, mas basta a voz do vento num campo de ervas (a voz dos mortos?), uma casa numa árvore, uma criança estranha à entrada de um cinema quando as ruas estão cobertas de neve, uma rapariguinha magra que quer ser uma estrela de cinema, um homem estranho numa carruagem de comboio, durante a noite, para que voltemos a encontrá-lo. É um mundo encantado, onde ainda acreditamos que para cada um de nós existe uma única pessoa, a única pessoa a quem podemos contar tudo, um mundo onde se aprende o amor: "Uma folha, um punhado de sementes... começa por estas coisas, aprende aos poucos o que é amar. Primeiro uma folha, um aguaceiro, depois alguém para receber o que uma folha te ensinou, o que a chuva fez amadurecer em ti. Não é um processo fácil, atenção; pode levar uma vida inteira, como aconteceu comigo, e, mesmo assim, ainda não lhe conheço os meandros; sei apenas que a verdade é essa e só essa: que o amor é uma cadeia de ternura, assim como a natureza é uma cadeia de vida."

Nesse mundo, encontramos pessoas como Dolly: "Mesmo quando chovia, era seu hábito deambular ao longo de um vulgaríssimo carreiro como se estivesse a passear num jardim, de olhos atentos em busca das preciosas plantas medicinais de aroma agradável, um raminho de poejo, de erva-cidreira ou de hortelã, ervas úteis cujas fragrâncias lhe perfumavam as roupas. Ela via tudo antes dos outros, e a sua única vaidade era essa, fazer questão que fosse ela, e mais ninguém, a apontar certas descobertas: as pegadas de um pássaro a desenharem no chão um círculo perfeito, o beiral de um telhado repleto de pingentes de gelo - estava sempre a chamar-me para ver uma nuvem em forma de gato, um navio feito de estrelas, um rosto humano na geada." Um mundo que pode ser triste: "Não é preciso estarmos mortos. Lá em casa, na cozinha, há um gerânio que floresce de novo todos os anos. Algumas plantas, porém, dão flor só uma vez, às vezes nem isso, e nada mais lhes acontece. Vivem, mas a sua vida já se completou."

Truman Capote começou a escrever aos oito anos, histórias de aventuras, novelas policiais, contos narrados por antigos escravos. Segundo ele, era divertido até descobrir a diferença entre escrever bem e escrever mal. E mais tarde fez uma descoberta ainda mais terrível: existe uma diferença entre escrever muito bem e a verdadeira arte. Num texto chamado "A Voice from a Cloud", em que fala do seu primeiro romance "Other Voices, Other Rooms", menciona os autores que o influenciaram, entre outros Henry James, Mark Twain, Edgar Poe, Jane Austen, Dickens e Proust. Por vezes um escritor sente que não tem de fazer qualquer esforço para escrever uma história, como se estivesse simplesmente a transcrever as palavras de uma voz vinda de uma nuvem. No "Self-Portrait" sugere que a obra de arte é o mistério, a magia extrema; e, embora saiba muito sobre a escrita, quando lê algo de muito bom os seus sentidos navegam num oceano de espanto. Como é que ele fez isto? Como é que é possível? É o que sinto sempre ao ler a "Harpa de Ervas" e alguns contos de "A Árvore da Noite". E neste caso a tradução é excelente, tem o mesmo encanto do original.

Num texto incluído em "Música para Camaleões", Capote diz que gostava de reencarnar como um pássaro, um falcão, porque ninguém gosta dele, é feio, indesejado em toda a parte, e há muito a dizer sobre a liberdade que isso oferece. E também diz que ainda não é santo. Mas quer ser. (Uma frase de Léon Bloy: "Só há uma infelicidade, que é não sermos santos".) E conclui com a sua oração nocturna, se eu morrer antes de acordar, peço a Deus para a minha alma levar. Por vezes acho que ele, que se debateu tantos anos com o seu último livro, que nunca terminou, "Súplicas Atendidas" (um título inspirado por uma frase de Santa Teresa, "Derramaram-se mais lágrimas sobre as orações atendidas que sobre as ignoradas"), teve as suas preces atendidas quando era muito jovem, quando escreveu livros como "Other Voices, Other Rooms", "The Grass Harp" ou "A Tree of Night". Não sei se estava a transcrever as palavras de uma voz nas nuvens, mas é essa a impressão que temos. Um terrível estado de graça. "Quando é que ouvi falar pela primeira vez da harpa de ervas? Muito antes do Outono que passámos na amargoseira; num Outono anterior, portanto; e, como não podia deixar de ser, foi Dolly quem me contou, pois mais ninguém se lembraria de chamar-lhe isso, uma harpa de ervas."

"A Harpa de Ervas" não é exactamente um livro para ler. É muito mais do que isso. É um livro para reler. Como um texto sagrado ou um conto de fadas. Até ao fim da vida.

"A Harpa de Ervas e A Árvore da Noite e outras histórias"
Autor: Truman Capote
Tradutor - Paulo Faria
Editor - Relógio D' Água Editores
325 págs.