abril 07, 2005

O Rosto de Deus, de Ana Teresa Pereira

por Fernando Figueiredo
Assistente do Departamento de Estudos Romanísticos da Universidade da Madeira.


Autora de narrativas policiais como Matar a Imagem (Caminho, 1989), A Última História (Caminho, 1991) ou Num Lugar Solitário (Caminho, 1996), Ana Teresa Pereira, natural da Madeira, vem trilhando também outros caminhos na mais recente ficção portuguesa, num registo narrativo que faz conviver a linearidade discursiva com uma técnica de suspensão de informação diegética essencial, fazendo o leitor apegar-se ao texto na busca de um desenlace para a história que, indicial e potencialmente, se vai mostrando mais profunda do que a superfície faria pensar. A introdução de imagens mágicas instauradoras do fantástico, está presente em livros como A Casa dos Pássaros (Caminho, 1991) e associa-se a uma espécie de sinestesia estética, numa incursão auto-reflexiva pelo fazer estético próprio de diferentes artes, como acontece com a pintura e a escrita, em O Rosto de Deus (1999).
Esta obra é constituída por dois contos aparentemente independentes, A Rainha dos Infernos e O Rosto de Deus, mas que confluem num único exercício de ligações arquitextuais entre narrativas fundadoras (como a Bíblia e algumas histórias índias) e projecções do nosso imaginário quotidiano. O grau de intertextualidade subjacente a personagens como o protagonista dos dois contos, constrói em O Rosto de Deus um efeito macrotextual que une as duas histórias editadas neste volume. A sua interligação, quer pela evidente reiteração paradigmática de Tom como protagonista de ambas, quer pela reflexão de profundidade existencialista, em torno da pintura, da escrita (Tom-pintor em A Rainha dos Infernos e Tom-escritor, em O Rosto de Deus) e das vivências paralelas (artísticas e afectivas), confere um elevado grau de coesão à matéria diegética, que faz com que estes contos, se, porventura, fossem publicados em separado, perdessem a dimensão reiterativa e exemplar de uma reflexiva abordagem da complexidade da vida humana.
Surpreendentes, misteriosas, e, fundamentalmente, envolventes, as narrativas começam por sugerir intensas histórias de amor, conduzindo, depois, o leitor à revelação de um proibição infringida, que inquieta o leitor e adensa o pulsar da realidade (individual e social) representada. Através de uma linguagem poética, sinestesicamente erótica, cromática e musical, o texto mostra-nos os traços marcados e o olhar profundo do(s) rosto(s) de uma controversa imagem de Tom (pintor e escritor, pai e amante), consubstanciando em energia e vida, imagens de uma tensão criadora aqui configurando deus. Tom é, em ambas as histórias, um misterioso estrangeiro que atrai as personagens por carta ou chega à pequena povoação para nela se instalar e em torno de si aglutinar as atenções, mesmo (porventura, principalmente) depois de sair de cena.
Numa obra em que a obsessão de descrição do rosto das personagens, as identifica pelos traços visíveis da misteriosa alma que encerram, as imagens dos pássaros, com as suas asas cortadas ou presas (como acontece em sugestivas impressões de um parto), representam as limitações existenciais do ser humano que a música, a pintura e a escrita laboriosa e abnegadamente procuram sublimar, através do esplendor artístico do som, da cor e da palavra, indelével presença do rosto de deus.


texto enviado por e-mail, com a devida autorização de publicação do autor.
Originalmente publicado no Diário da Madeira de 30 de Abril de 2002.