janeiro 12, 2004

A Quatro Mãos-Sábado, 10 de Janeiro de 2004

O Desejo
Ana Teresa Pereira

Adela Moore tinha vinte e cinco anos e gostava de pensar que "viajara muito". Tinham-lhe acontecido quase todas as aventuras que deviam acontecer a uma rapariga da sua idade. Sentia-se em casa pelo menos em três cidades dos Estados Unidos, passara um ou dois verões na Europa, viajara uma vez até Cuba. Estivera noiva e desfizera o noivado. Não sendo de uma beleza perfeita, era extremamente agradável à vista, alta e muito esbelta. Além do mais, herdara uma razoável fortuna. Mas começava a ter a impressão de que já vira o bastante do mundo e da natureza humana. E quando o irmão mais velho a convidou a viver com ele, numa bela casa a uma milha de distância da cidade mais próxima e a seis milhas da velha universidade onde ele ensinava, Adela aceitou. Gostava da ideia de viver no campo, passear e andar a cavalo, ler os livros antigos da biblioteca do irmão. Só ao fim de uns seis meses Herbert Moore percebeu que a irmã levava uma vida quase ascética. Aprendera a escalar montanhas, a andar a cavalo e tinha alguns conhecimentos de botânica. Passaram mais seis meses. Numa manhã de Setembro, Adela encontrava-se sozinha em casa e sentiu um desejo inesperado de brincar com o fogo, explorar o castelo do Barba Azul. Mas não havia nada de misterioso na moradia do irmão. Sentou-se no banco de uma janela, com o seu bordado, e viu um homem que caminhava pela estrada em direcção à casa. Pouco depois a criada trazia-lhe um cartão: Thomas Ludlow. New York.

O homem que a esperava na sala era jovem e bem-parecido. Tom Ludlow dedicava-se ao estudo de fósseis e por esse motivo procurara Herbert Moore. Enquanto aguardavam o seu regresso, os dois jovens resolveram dar um passeio. Adela começou a sentir-se um pouco inquieta quando chegaram a um portão, do outro lado do qual os campos se estendiam de forma vaga e um tanto selvagem. Ela era uma grande observadora de nuvens, plantas, ribeiros, ar transparente e horizontes azuis. A floresta de cedros e carvalhos tornava-se cada vez mais densa, a linha do horizonte era quase púrpura. Depois de uma pequena subida, atingiram um planalto à beira da falésia. Ali havia sol e sombra e um círculo de árvores que fazia Adela pensar nos pinheiros-mansos de Villa Borghese. Adela encaminhou-se para um banco entre as rochas de onde se via o rio. O vento nas árvores sempre me pareceu a voz de mudanças que estão para chegar.

E o seu companheiro disse que no dia seguinte ia para a Europa. Oh, exclamou Adela. Como o invejo. E Ludlow percebeu que, se a primeira exclamação era natureza, a segunda era arte. Ele disse que tinha vinte e oito anos e lera muitos livros. Ia para Berlim no dia seguinte, tinha dinheiro para os primeiros seis meses, depois teria de encontrar um trabalho. Quando, mais tarde, regressaram a casa, Adela viu o seu reflexo e pensou que estava transformada, viajara para muito longe; brincara com o fogo de forma tão eficiente que conseguira queimar-se. E daí a pouco Ludlow perguntou se ela queria que ele ficasse. Só tinha de atirar o chapéu, sentar-se, cruzar os braços durante vinte minutos e perderia o comboio e o barco. Adela quis saber se, no caso de ela lhe pedir, ele ficava. E ele pensou que seria muito poético perder o barco pela sugestão de um facto, menos do que um facto, uma ideia, menos do que uma ideia, um pressentimento. Mas tê-la visto assim...

O conto de Henry James chama-se "A day of days". Li-o a noite passada e depois vi um filme dos irmãos Cohen, eras um gangster e chamavas-te Tom, o teu rosto no escuro, a tua voz. Eu não sei o que acontece a uma escritora que se apaixona pela sua personagem, só sei que desde que te conheci não voltei a escrever...

janeiro 08, 2004

Os Contos de Ana Teresa Pereira




Contos de Ana Teresa Pereira é o último livro da autora e o nº 5 da colecção Contos da Relógio D’Água, reunindo num só volume alguns textos publicados nesta e noutras editoras.
A começar encontramos Fairy Tales, conjunto de textos que foi editado pela Black Sun Editores e posteriormente recuperado para a segunda parte do livro A Coisa que Eu Sou, Relógio D’Água, 1997. Ele inclui os contos, As Asas, As Rosas, As Estátuas, O Prisioneiro, Os Monstros, O Ponto de Vista das Gaivotas, Tell Me Something Nice (também editado na revista Bíblia), O Teu Lugar No Meu Corpo e As Beladonas.
O segundo conto é Até Que a Morte Nos Separe, versão publicada na Invista que foi posteriormente revista e aumentada dando origem ao livro com o mesmo nome editado pela Relógio D’Água em 2000.
O Anjo Esquecido, Sete Anos e A Noite Mais Escura da Alma são os três contos do último livro que Ana Teresa Pereira (ATP) editou na Caminho com o título de A Noite Mais Escura da Alma, em 1997.
Num Lugar Solitário é também a transcrição integral do livro com o mesmo nome publicado na Caminho em 1996.
Se Eu Morrer Antes de Acordar, o último conto deste livro, é também o último do livro com o mesmo nome editado pela Relógio D’Água em 2000.


A oportunidade da reunião destes contos de ATP nesta colecção é discutível, mas tem, logo à partida o interesse de juntar o nome da autora ao de quatro outros grandes escritores: Edith Wharton, Virginia Woolf, Katherine Mansfield e Aleksandr Púchkin, os quatro primeiros livros da colecção. É discutível porque não nos traz nada de novo, o que poderia levar a pensar numa estratégia comercial da empresa de reeditar os textos de ATP e aumentar as vendas. Mas ao mesmo tempo isso não faz sentido porque ATP não vende muito, apesar de nos últimos tempos ter editado quase dois livros por ano. Esta edição tem também o mérito de trazer para a Relógio D’Água os textos mais importantes que a autora publicou na Caminho, ou seja, os livros A noite Mais Escura da Alma e Num Lugar Solitário.
A selecção e organização deste volume parece “ter a mão” da própria autora, os textos escolhidos e a forma como estão dispostos têm as características da sua escrita envolvente. Por outro lado a fotografia da capa é ridícula e o próprio arranjo gráfico fica longe do universo de ATP, o que nos leva a supor que nada disto teve a ver com ela.
Em que ficamos?
Na minha opinião, num ponto de viragem, em que a obra de ATP tem de provar a si mesma o valor da sua escrita, não a mais ninguém, nem a editores, nem aos leitores dos seus livros e crónicas.
Uma das criticas mais comuns aos seus livros é a obsessão dos temas, a escrita recorrente e cheia de referências explicitas. Uma escritora de “copy paste” como tantas vezes já ouvi dizer, referindo-se especificamente ao livro As Rosas Mortas, Relógio D’Água, 1998. Não estou de acordo, nunca estive e já rebati esta e outras ideias vezes sem conta. As obsessões de ATP são a melhor característica da sua escrita. Mas terei de reconhecer algum fundamento nestas ideias se continuarem a ser editados livros como este último ou mesmo como Intimações de Morte, Relógio D’Água, 2003, em que a revisão técnica estragou por completo um romance quase perfeito, como refere Helena Barbas no Expresso.
Espero que 2004 traga Ana Teresa Pereira no seu melhor, não importa se for “mais do mesmo”.