julho 28, 2005

O monstro de olhos verdes

Começar a ler um livro de Iris Murdoch é entrar num mundo desconhecido, que não se parece com nada, e ao mesmo tempo é aquele em que vivemos.


Ana Teresa Pereira
Jornal Público, suplemento MilFolhas, 23 de Julho de 2005

“Tu fizeste com que eu representasse, fizeste com que toda a gente representasse, és como um bom dançarino, fazes com que os outros dancem, mas tem de ser ‘contigo’. Não respeitas as pessoas enquanto pessoas, não as ‘vês’, não és verdadeiramente um professor, és uma espécie de feiticeiro predador.”

Charles Arrowby, um conhecido encenador de teatro no crepúsculo da sua carreira, decide retirar-se para uma velha casa junto ao mar, no norte de Inglaterra, e escrever as suas memórias. Ele escreveu algumas peças, efémeras, quase pantomimas, que não deixou mais ninguém encenar. Mas agora quer algo que permaneça; logo na primeira página o texto transforma-se num diário, e mais tarde num romance.

“O mar, o Mar”, de Iris Murdoch, é uma recriação, sem dúvida a mais brilhante, de “A Tempestade” de Shakespeare. Charles é um Próspero de sessenta e poucos anos que decide renunciar à sua magia e ao seu poder: a magia e o poder do teatro, a magia e o poder das relações pessoais. O final da vida é um tempo de meditação, talvez o tempo de aprender a ser bom. Há pessoas que passam o final da vida numa cave. A casa de praia situada num promontório (Shruff End), as rochas à volta e uma torre em ruínas serão a sua cave. Os amigos não acreditavam que ele algum dia se retirasse (seria como se Deus se retirasse). Ou então, pensavam que se deixasse de trabalhar e vivesse sozinho iria enlouquecer aos poucos. Mas nos primeiros dias Charles sente-se plenamente feliz com a solidão e a proximidade do mar. O oceano, onde tudo termina para voltar a começar, assemelha-se de alguma forma ao teatro, infinita construção, infinita destruição.

No entanto, a solidão não dura muito tempo. Não é possível deixar a vida para trás e olhá-la de fora. A casa torna-se inquietante (uma casa assombrada onde os objectos se deslocam e se ouvem ruídos durante a noite), as imagens e os demónios que vivem dentro de Charles começam a materializar-se à sua volta. E em breve surgem visitas que ele não esperava: antigas amantes, maridos ciumentos, actores com quem trabalhou, um jovem que imagina ser seu filho. Há momentos em que Shruff End é nitidamente um cenário de “A Tempestade”: Charles é Próspero, o velho mago, Lizzie, uma ex-amante que ele de certa forma invocou, é Ariel, Gilbert Opian, que vai apanhar lenha e o serve, é Caliban. Ariel e Caliban amam Próspero.

A história trona-se muito estranha quando Charles reencontra o seu primeiro amor, Mary Hartley Smith. Ela é o motivo porque nunca casou (embora também afirme que nunca encontrou alguém que se comparasse às heroínas de Shakespeare), a mulher em quem pensou todos os dias da sua vida. Hartley, de olhos azuis-escuros que pareciam violeta quando não se estava a olhar para eles, rosto pálido e pernas compridas, com quem andava de bicicleta e se deitava em campos cobertos de flores amarelas, perto de vias-férreas e de canais. Hartley tinha os lábios frios e não fechava os olhos quando ele a beijava; nunca o abraçou mas por vezes apertava-lhe os braços com uma certa rigidez deixando nódoas negras. Conversavam como anjos (não obscuramente, como num espelho, mas face a face), faziam planos para o futuro. Essas memórias são mais radiosas do que uma obra de arte, mais importantes do que Shakespeare e Piero della Francesca.

Ao encontrar Hartley, Charles compreende (ou imagina) que continua a amá-la. “Apetecia-me tocá-la, mas apenas com a ponta dos dedos, como se ela fosse um fantasma que se pudesse dissolver, apetecia-me sentir entre os dedos o toque do seu vestido. Agora sentia uma necessidade mais precisa, a de prender entre as suas mãos a sua cabeça e puxá-la suavemente para mim, de ouvir o seu coração bater.” Está de tal forma dominado pelo ciúme e a obsessão que começa, quase inconscientemente, a encenar um drama; afinal o mundo é um palco e os outros não passam de actores que ele pode dirigir, e sente-se capaz de arrasar tudo e todos para atingir os seus objectivos. A presença de Hartley faz com que o espaço e o tempo desapareçam. Não importa que ela seja velha (tem a sua idade), feia (o facto de a amar embora já não seja bonita dá-lhe prazer) e casada há mais de quarenta anos com um homem tão obcecado e violento como ele. Os casamentos são lugares muito secretos e Nibletts, apequena vivenda no cimo da colina, com inúmeros canteiros de rosas e uma bela vista do mar, está longe de ser um cenário pacífico.

Em Londres, ao visitar a Wallace Collection, Charles vê um quadro de Ticiano, “Perseu e Andrómeda”, que lhe parece uma projecção da sua história. A jovem amarrada às rochas, o amante que se precipita para o mar e o monstro marinho... Pouco depois entra na sala (no palco?) o seu primo James, um militar enigmático que tem uma ligação muito forte com o Tibete e com os poemas de Milarepa. Quando eram crianças, Charles perguntava a si mesmo se era real e James desprovido de realidade, ou vice-versa, um deles devia pertencer ao mundo das sombras (na verdade há momentos em que eles se parecem dois aspectos de um mesmo ser). A magia de James era diferente da de Charles, ele encontrava os caminhos dos bosques e os objectos perdidos, conhecia os nomes dos pássaros e das flores e tentava seriamente aprender a voar. Quase no fim do livro, intuímos que é capaz de levitar e talvez até de escolher o momento da sua morte.

Charles é um actor. Ele acha que os actores são seres mascarados e o ideal é que a máscara quase não toque o rosto; mas no fundo é um “becomer”, transforma-se na personagem que está a interpretar. Autor da peça, encenador, e primeiro actor. Mas talvez não seja tão poderoso como imagina, não na vida real. Na última página, quando, sem querer, faz cair um pequeno cofre onde supostamente está preso um demónio, e a tampa se abre, pergunta a si mesmo: “Nesta peregrinação a que chamamos vida humana, dominada pelos demónios, que posso agora esperar?”

E, ao longo de todo o livro, a presença do mar. A eterna transformação, o eterno recomeço. Como em muitos romances da escritora, o lugar onde se morre e por vezes se renasce. E o céu. “Já não estava escuro, mas brilhante, dourado, como ouro rm pó, como se alguém houvesse removido sucessivas cortinas atrás das estrelas que eu vira anteriormente, e eu estivesse agora a olhar para o vasto núcleo do universo, como se este estivesse, silenciosamente, a virar-se do avesso.” E uma pergunta obsessiva, que se repete uma e outra vez: “Quem é o nosso primeiro amor?”. A resposta pode não ser tão simples como parece.

Iris Murdoch nasceu em Dublin em 1919 e morreu em Oxford em 1999. Foi aluna de Wittgenstein, amante de Elias Canetti. Na sua obra sente-se particularmente a influência de Platão, Kant e Simone Weil. É autora de vários livros de filosofia, peças de teatro e vinte e seis romances. “O Mar, o Mar” ganhou o Booker Prize em 1978. É considerado por muitos o seu melhor romance, uma das obras-primas da literatura inglesa do século vinte. O título remete para Valéry (“La mer, la mer, toujours recommencée”) e Xenofonte (as palavras dos gregos ao avistarem o mar durante as guerras pérsicas). Malcolm Bradbury escreveu que o livro é implacável e cheio de dor; Gabriele Annan que é uma comédia com vigias que nos permitem olhar para o cosmos.

Começar a ler um livro de Iris Murdoch é entrar num mundo desconhecido, que não se parece com nada, e ao mesmo tempo é aquele em que vivemos. “O Mar, o Mar”, à semelhança de outros romances da autora, pode ser lido como um conto de fadas (no sentido em que muitos contos e novelas de Henry James são “fairy tales”), como uma história de amor e morte, como uma investigação filosófica. Estão presentes nele alguns dos seus temas habituais: o conflito entre o artista e o santo, a possibilidade de ser bom num mundo sem Deus, a vida como uma peregrinação espiritual.

Bem vindos ao mundo de Iris Murdoch.

“O mar que se estende à minha frente enquanto escrevo resplandece, mais do que cintila, sob um morno sol de Maio. Com a mudança da maré, reclina-se calmo contra a costa, quase liso, sem espuma nem ondulação. Nas proximidades da linha do horizonte é de um púrpura voluptuoso, atravessado por linhas regulares de verde-esmeralda. No horizonte é cor de anil. Junto à praia, onde a minha vista é enquadrada por cabeços de rocha amarelada, vê-se uma faixa de um verde mais claro, frio e puro, menos luminoso, mas opaco, não transparente. (...)

A passagem acima, com a qual tencionava abrir o primeiro parágrafo das minhas memórias, escrevia-a pouco antes de um acontecimento tão extraordinário e tão horrível, que ainda hoje o não consigo descrever, e isto apesar de ter passado já algum tempo e me ter ocorrido para ele uma explicação plausível, ainda que não inteiramente tranquilizadora.”