julho 28, 2005

O fogo e o gelo

Ana Teresa Pereira adensa o lugar de onde nos fala

Manuel de Freitas
suplemento Actual, jornal Expresso, 23 de Julho de 2005

Gostaria de ter lido estes textos ao som de Facing North, de Meredith Monk, ou do inencontrável Melt the Snow, de Virginia Astley. Mas Ana Teresa Pereira, alheia aos meus fúteis caprichos, envolve-nos desta vez com a música de Brahms, Charlie Parker, Chico Buarque; e com as imagens de El Greco, Ticiano, Monet, Morandi ou Giacometti. Já para não falar dos inúmeros filmes evocados (de Nicholas Ray a Tarkovski) e das presenças quase tutelares de Rilke, Henry James, William Irish ou Iris Murdoch.
Um parágrafo como o anterior, que esteve longe de ser exaustivo, pode muito bem suscitar aos mais incautos o receio de uma penosa indigestão cultural. Se assim não acontece é porque existe em Ana Teresa Pereira uma raríssima capacidade de apropriação e de ironia – e a “ironia”, aqui, vale sobretudo enquanto método de distanciamento e invocação (paradoxo necessário) face ao que se nos revela perigosamente próximo. Vejamos um exemplo, tão simples na aparência, dessa obstinada vontade de apropriação: “Jane e Michael caminham numa cidade coberta de neve, sem nunca se encontrarem, e eu sinto a falta de neve, e de frio, e de nevoeiro, como sinto a falta dos quadros de Mark Rothko (o ‘meu’ Rothko)” (pág. 12). São bem mais fecundas e complexas as consequências deste gesto que transforma o alheio num magma irredutivelmente próprio. Na obra de Ana Teresa Pereira – e isto é particularmente evidente em O Sentido da Neve, como o já fora em O Ponto de Vista dos Demónios (Relógio D’Água, 2002) -, assistimos a um grau invulgar de honestidade literária. Isto é, as obsessões artísticas são claramente assumidas e nomeadas, mas nunca sob o penhor ostensivo de um qualquer culturalismo, epigonismo ou sentido paródico (na acepção etimológica do termo). Pelo contrário, a autora desenvolve – em jeito de continuum ou de fuga – um diálogo com as várias artes que lhe servem de lastro; algo a que seria erróneo ou redutor apodar de “intertextualidade”. Daí que o convívio de Ana Teresa Pereira com os seus “fantasmas” (cerimónia em que Harold Bloom seria a mais indesejada das presenças) se possa traduzir num misto de idolatria e displicência: “Não me importo que um dia digam dos meus livros o que disseram dos de Henry James, que são catedrais (neste caso capelas) vazias com um gatinho morto no altar” (pág 12).
É legítimo sustentar, partindo até das suas palavras, que a autora tem escrito sempre o mesmo livro, seja em registo policial, “western” ou “infanto-juvenil” (e aí, de facto, apeteceria falar de uma notável sabotagem dos géneros, enquanto difusa reivindicação do próprio, do que a mais ninguém pertence): “Dois monstros feridos que há anos escrevem o mesmo livro, duas aranhas debatendo-se na mesma teia (uma casa velha junto ao mar, lilases e pedras, a presença insuportável das gaivotas)” (pág. 17). Porém, nesta obra, repetição e diversidade caminham juntas, talvez por Ana Teresa Pereira não ignorar que existem línguas que “têm trinta palavras diferentes para neve” (pág. 53). E o gelo incandescente que atravessa estas “crónicas” (às quais poderíamos facilmente chamar outra coisa) tem de novo, além de um exacerbado pendor auto-reflexivo sobre a natureza da escrita, um acento inegavelmente melancólico: “Nos últimos meses reli algumas das minhas novelas e foi estranho, não me lembrava dos demónios, demónios e anjos que nascem uns dos outros como numa gravura de Escher (e não me lembrava de que os livros são feitos de tempo, alguns livros e estamos velhos, mais alguns e estamos mortos)” (pág. 40).